“Venho contar as narrativas das pessoas pretas, periféricas, trans e travestis”

Ökram Niodara, analista sênior de DHO do iFood, conta como participar do grupo de diversidade da empresa a ajudou a se descobrir uma mulher trans.

Na infância, Ökram Niodara (ou melhor, a Dara) se sentia muito incomodada. “Eu nasci em Itaquera, cresci na zona leste de São Paulo, fui criada em Santo André, no ABC Paulista, pela minha mãe e não me conformava de ver que a gente passava por situações de fome e violência”, lembra. “Aquilo para mim não estava certo, eu queria mudar aquela narrativa.”

Conforme foi crescendo, ela notou que o incômodo também era dos outros —com a sua presença. “Estar em qualquer lugar, para mim, era uma maneira de fazer provocações como ‘cadê as outras pessoas pretas nesse espaço? Eu sou a única que veio da periferia, a única pessoa gay?”, diz Dara. 

Nessa época, ela mentalizou uma frase: “não quero ser mais uma pessoa preta que vai passar a vida em branco”. Mas como mudar essa história? Para Dara, a resposta era encontrar seu diferencial. “Venho de uma família de mãe, tias e avó que conhecem todo mundo e gostam de conversar. Então desde pequena eu sempre me comuniquei bem. Sempre gostei muito de me relacionar e de trabalhar com pessoas.” 

Seus primeiros trabalhos foram na área de vendas, onde precisava ter argumentação na ponta da língua para se dar bem. Mais adiante, ela resolveu fazer faculdade de Gestão de Recursos Humanos para entender melhor a complexidade de lidar com pessoas. 

Só que ela sentia que, quando queria ser ouvida nas empresas, suas observações geralmente não eram bem-vindas. “Eu não era vista como alguém que pudesse dar uma contribuição para que aquela organização se tornasse mais humanizada”, recorda. 

A mudança de narrativa

Em 2018, Dara passou a trabalhar em frente ao iFood, em Osasco (SP)e também morar na cidade e resolveu concorrer a uma vaga na empresa. Não foi chamada de primeira, mas gostaram do seu perfil, e três meses depois ela recebeu uma proposta para trabalhar com atendimento. 

“Fiquei feliz pra caramba”, conta. “Eu vinha de empresas super tradicionais e encontrei um mundo diferente, onde realmente existem liberdade, autonomia, escuta. A partir daí, eu posso falar que começou uma nova narrativa na minha vida.”

O primeiro passo dessa mudança tem a ver com o desenvolvimento profissional. Pela primeira vez, lideranças a ajudaram a estruturar um plano de carreira e a pensar no seu desenvolvimento profissional. “Nunca tive isso nem na minha família. Aqui, eu fui acolhida para entender o caminho que eu poderia seguir”, afirma Dara, que hoje é analista sênior de DHO (Desenvolvimento Humano e Organizacional) do iFood.

Assim que entrou na empresa, ela buscou se envolver com os comitês do Pólen, que discute temas relacionados a grupos sub-representados na sociedade. Sua primeira escolha foi se conectar ao grupo do movimento negro. “Nunca tinha conversado sobre essas questões com outras pessoas. Na mentoria para pessoas negras, falamos de raça e ancestralidade. Eu me conectei com a minha raça como nunca havia me conectado antes.”

Essas novas conversas estimularam Dara a explorar a sua identidade, a olhar para o espelho e se perguntar quem ela era e o que representava. Foi então que ela decidiu participar do comitê LGBTQIAP+, onde chegou a ser líder.

“Naquela época eu me entendia como cis. Quando comecei a me conectar com essas pessoas, diversas questões sobre a minha identidade foram surgindo”, lembra. “Foi no iFood que eu me descobri como uma pessoa trans e travesti, recentemente. Esse espaço de diálogo, de liberdade, me incentivou a me conectar comigo mesma.”

Hora da transição

Ela conta que decidiu aproveitar as férias de 2022 para prosseguir com a sua transição. “Quando voltei, minha liderança me apoiou totalmente nesse processo de autodescoberta e me ajudou a compartilhar isso com as outras pessoas. Aquilo me deu sensação de acolhimento, respeito e incentivo para eu me conectar comigo mesma. Isso é inclusão.”

Aos 31 anos, ela conta que, pela primeira vez na vida, sente uma felicidade completa. “Quando olho no espelho, eu vejo que essa é a Dara, que esteve escondida durante tanto tempo. Eu me vejo profissionalmente muito mais segura, capaz, sem medo de errar, como uma pessoa que é uma potência.”

Hoje, Dara quer que sua presença continue causando incômodo, só que construtivo. “As identidades que eu represento hoje, sendo uma pessoa preta, periférica e travesti, não são comuns para os lugares que eu ocupo. Existem muito mais pessoas como eu esperando uma oportunidade para estar nesses espaços. Os avanços não podem ser só meus, isso precisa ser um movimento coletivo, senão a gente não muda, de fato, a realidade.”

Por isso, seu sonho grande é que mais pessoas possam também se olhar no espelho e sentir a mesma plenitude que ela. “Pela primeira vez eu tive muito orgulho de me apresentar como eu realmente sou. Só aqui eu percebi que as minhas características não iriam me prejudicar profissionalmente. Eu não tenho que vestir uma máscara para ser uma boa profissional.”

Ela acredita que sua trajetória pode até ser singular, mas se conjuga no plural. “As narrativas que eu venho contar não são só da Dara. São as narrativas também de outras pessoas pretas, periféricas, trans e travestis. De pessoas negras que enfrentam racismo no mercado, que não ocupam cargos de liderança, das pessoas trans e travestis que não estão nas organizações, da luta LGBTQIAP+, que não fala só sobre o amor, e sim sobre o nosso direito de existir.”

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